A pandemia da Covid-19, a maior crise de saúde pública da nossa geração, começa já a causar repercussões absolutamente devastadoras em grande parte dos sectores económicos e na sociedade como um todo. É já absolutamente claro que, após a profunda crise de saúde pública, se seguirá uma profunda crise económica. Curiosamente, o surf e as restantes modalidades de deslize têm tido, ao longo dos últimos meses, um aumento generalizado no número de praticantes como há muito não se assistia. Esta crescente procura foi motivada, essencialmente, pela saturação causada pelos longos períodos de confinamento, gerando um desejo global de realização de atividades de ar livre.
Nas nossas praias, este aumento de praticantes é bem visível e veio contribuir para agravar a já complexa problemática da sobrecarga dos recursos naturais que são as ondas. O deficiente ordenamento das praias e a precariedade da regulamentação dos operadores de ensino de surf são uma realidade em Portugal e, desde a existência da Associação de Escolas de Surf de Portugal (AESDP), que temos vindo a alertar para a insustentabilidade desta situação. À medida que mais praticantes se introduzem a estas modalidades, maior é a consciencialização da comunidade para as consequências nocivas desta desregulação, que coloca em causa a segurança e potencia o conflito entre utilizadores.
Estamos prestes a entrar num ano que será particularmente desafiante para a nossa atividade. Se a incerteza relativamente ao futuro não estivesse já mais do que instalada, fruto das consequências da pandemia, o ano de 2021 será ainda marcado por mudanças radicais ao nível da gestão das praias, competência que será transferida das 20 Capitanias para os 50 Municípios costeiros de Portugal Continental.
Tendo em conta os elevados níveis de desinformação a que se tem assistido, fruto desta incerteza generalizada, a AESDP vem partilhar a sua reflexão daquilo que podemos esperar para o futuro da nossa atividade e de como todos podem contribuir para a solução.
O atual estado do sector
O sector de ensino de surf tem estado em constante crescimento ao longo das suas três décadas de existência. Tanto na vertente de formação desportiva, como na de lazer e turística, os serviços prestados por estes operadores têm sido cada vez mais procurados, fruto dos próprios operadores que desenvolveram o sector, bem como das diversas entidades públicas e privadas que têm apostado na promoção da imagem de Portugal como um destino de surf de excelência.
Bem demonstrativo deste aumento, são os mais de 900 registos no Turismo de Portugal, de Agentes de Animação Turística que afirmam oferecer atividades de surf. Sabemos, contudo, que nem todos estes agentes desenvolvem efetivamente essa atividade, ou não o fazem com uma regularidade que os enquadre como operadores de ensino de surf. Paralelamente, no ano de 2020, registaram-se 312 Escolas de Surf na Federação Portuguesa de Surf. Já os dados cedidos pelas Capitanias e Municípios, responsáveis por licenciar estes operadores para operar nos territórios da sua jurisdição, apontam para mais de 370 operadores licenciados.
Relativamente aos técnicos habilitados para conduzir as sessões (vulgo aulas de surf), Treinadores certificados pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), contavam-se em agosto de 2020 um total de 1.244 Treinadores com as respetivas Cédulas válidas, de acordo com a seguinte distribuição: 1.154 Treinadores de Surfing Grau I, 80 Treinadores de Surf Grau II, 6 Treinadores de Bodyboard Grau II e 4 Treinadores de Surf Grau III.
O que sabemos
A principal certeza, neste momento, é que a partir do próximo ano, todos os Municípios costeiros irão assumir as competências de gestão das praias, domínio no qual se insere o licenciamento dos operadores de ensino de surf. O Decreto-Lei N.º 97/2018, de 27 de novembro, que concretiza esta transferência de competências, permitia aos municípios optar por não assumir esta obrigação nos anos de 2019 e 2020. A partir de 2021, as autarquias já não terão esta possibilidade. Em 2020, 24 dos 50 municípios costeiros assumiram esta competência. Contudo, a grande maioria destes 24 municípios acabou por não proceder ao licenciamento dos operadores, que nesses casos acabou por se manter a cargo das respetivas Capitanias.
Até agora, à falta de uma legislação nacional que definisse os requisitos obrigatórios de licenciamento e as regras de funcionamento destes operadores, coube a cada Capitania definir as suas próprias regras de licenciamento a nível local. Uma vez que a legislação se mantém inexistente, podemos esperar 50 novos conjuntos de regras, requisitos e critérios de licenciamento, definidos individualmente por cada Município. Como se isso não bastasse, importa realçar que apenas serão transferidas para as autarquias as competências nas praias definidas em Portaria como “águas balneares”, sendo que as restantes se irão manter da responsabilidade das Capitanias. Ou seja, a costa portuguesa irá tornar-se numa autêntica manta de retalhos, em que a gestão local e as regras de funcionamento e licenciamento serão definidas por 70 órgãos locais (50 Municípios + 20 Capitanias), isto sem contar com os restantes órgãos de âmbito nacional, as autoridades portuárias, entre outros. Resultado esperado: um pesadelo burocrático, administrativo e jurídico para operadores e órgãos licenciadores e um caos generalizado em toda a costa, em que ninguém irá compreender o que é ou não permitido, tal será a multiplicidade de regulamentos de praia para praia.
Contudo, apesar da escuridão do atual cenário, surgiu recentemente uma luz ao fundo do túnel. Foi criado recentemente, um Grupo de Trabalho Interministerial para o Acompanhamento da Animação Turística, que reúne todos os órgãos públicos e governamentais que têm competências sobre esta matéria. Dentro deste grupo, em resposta aos nossos apelos, a regulamentação dos operadores de surf foi já definida como uma das áreas prioritárias, tendo inclusive sido criado um subgrupo específico para tratar este tema. Acreditamos que a solução para a regulamentação nacional da nossa atividade irá surgir através deste grupo de trabalho, pelo que tudo iremos fazer para continuar a fazer chegar a voz dos operadores às mais altas instâncias, acompanhando os trabalhos e fazendo-nos representar neste grupo.
Ao nível da formação de Treinadores, acresce que esta está novamente estagnada, desde o início deste ano. Em março, foram suspensos pelo IPDJ todos os cursos de Treinadores, para se proceder à alteração dos Referenciais de Formação, a cargo do próprio instituto e das respetivas federações. Sabemos que, neste momento, já 90% das federações entregaram ao IPDJ as suas propostas de alteração aos referenciais, entre as quais não se inclui a Federação Portuguesa de Surf.
O que falta saber
Em primeiro lugar, falta saber quais serão as regras de funcionamento, requisitos e critérios de licenciamento aplicados por cada um dos municípios. Enquanto a legislação nacional não for uma realidade, importa que se consiga ter a maior uniformização possível, para que a discrepância ao longo da costa seja a menor possível.
Em segundo lugar, importa compreender de que forma será feita a distinção entre os agentes que têm uma atuação centrada no lazer e turismo, daqueles que pretendem prestar um acompanhamento desportivo com vista ao desenvolvimento técnico e competição. É expectável que os municípios venham alterar o que tem sido a prática da maioria das Capitanias, de exigir o registo dos operadores simultaneamente na FPS e no Turismo de Portugal.
Por fim, falta também perceber quando se irá iniciar a formação e o reconhecimento de competências de Treinadores, que estão dependentes da entrega dos referenciais por parte da FPS e para a qual não há ainda qualquer data prevista.
O caminho a percorrer
São muitos os desafios que o surf em Portugal enfrenta neste momento e não são exclusivos dos operadores de ensino, mas sim de toda a comunidade de surf nacional. A desregulação e desordem que se tem sentido nas nossas praias afetam todos aqueles que as frequentam, com destaque para surfistas e operadores durante todo o ano, bem como banhistas e restantes utilizadores, maioritariamente na época balnear.
Um dos principais desafios pela frente é o de combater a propagação de operadores de ensino de surf ilegais, que operam sem licenciamento e de forma descaracterizada. Para tal, é importante que se conheçam as regras de funcionamento e licenciamento locais, bem como os operadores devidamente licenciados para cada praia. Os municípios deverão fazer um esforço de divulgação transparente de todos os agentes autorizados para operar, tornando essa listagem pública e visível. Além disso, deveremos todos em conjunto trabalhar no sentido de haver uma maior e mais eficaz comunicação entre os agentes legais e licenciados, os surfistas e as entidades licenciadoras e fiscalizadoras, para que não se esteja constantemente a fiscalizar os cumpridores, mas sim aqueles que atuam de forma desleal e ilegal. É também determinante que se criem mecanismos que permitam uma clara diferenciação entre os agentes que atuam de forma séria e profissional, com qualidade, daqueles que não o fazem, permitindo ao próprio mercado uma mais fácil seleção – o que levou à criação do Certificado de Qualidade de Escolas de Surf AESDP, que será lançado muito em breve.
Por outro lado, a clarificação do regime legal e a uniformização das regras de licenciamento em todo o território é também urgente. Para tal, vamos continuar a apoiar Capitanias e Municípios nesta definição, para que os processos de licenciamento sejam legais, justos e transparentes. Além disso, faremos um acompanhamento do Grupo de Trabalho Interministerial que está a discutir esta temática, para que as especificidades do surf sejam tidas em conta no momento de decisão, preservando ao máximo os princípios e a cultura surfista.
Por fim, é urgente que se retome a formação de Treinadores, que não são ainda suficientes a nível nacional para dar resposta às necessidades de todos os operadores, especialmente durante os meses de Verão. Para que haja um melhor funcionamento das praias, com maiores garantias de segurança durante todo o ano, é essencial que todos os técnicos envolvidos tenham uma formação de qualidade, com vista à crescente profissionalização da nossa atividade.
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